A Assembleia Geral do povo Kaiowá e Guarani, a Aty Guasu, denunciou pelas redes sociais uma troca de mensagens virtuais que indica o planejamento de um massacre contra estudantes dentro de uma escola indígena no Mato Grosso do Sul.
Conforme a Aty Guasu, as ameaças são direcionadas para uma instituição de ensino no interior da Terra (TI) Indígena Amambai, onde vivem 12 mil pessoas. Nos últimos meses, três Guarani Kaiowá foram assassinados a tiros enquanto tentavam retomar terras ancestrais, hoje ocupadas por fazendeiros.
Embora a veracidade da conversa não tenha sido comprovada, o episódio colocou as comunidades em alerta. Nos supostos diálogos divulgados na quarta-feira (27), duas pessoas combinam, em detalhes, de “entrar naquela escola e metralhar os filhos dos vagabundos”.
As ameaças, que preveem até 10 vítimas, teriam motivado a paralisação de atividades de saúde, educação e de instituições religiosas voltadas aos indígenas. A Aty Guasu pediu que o episódio seja investigado com urgência.
No dia em que foi divulgada a troca de mensagens, o Ministério da Justiça mandou a Força Nacional à região. Sem citar os indígenas, a ordem assinada pelo ministro da Justiça, Anderson Torres, determina a presença de tropas em cidades onde houve registro de violência contra os Guarani Kaiowá.
A eleição para capitão e vice-capitão dos Guarani Kaiowá da TI Amambai, uma herança do tempo em que os indígenas foram confinados em pequenas reservas, é citada na troca de mensagens. Segundo o MPF, o pleito tem motivado um “conflito que envolve a liderança da aldeia”.
O Brasil de Fato perguntou à Funai, Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Civil do Mato Grosso Sul quais providências estão sendo tomadas para evitar mais casos de violência contra os Guarani Kaiowá e identificar a veracidade e os autores da suposta ameaça. Não houve respostas até a publicação.
“Recado dos ruralistas”
Após a divulgação do diálogo, o clima de pânico tomou conta da TI Amambai. Daniel Lemes Vasques, liderança da Aty Guasu, relatou que aulas de crianças e adolescentes foram suspensas temporariamente em três escolas indígenas.
Cultos evangélicos, muito presentes nos territórios da região, também foram interrompidos. Um posto de saúde foi fechado, por medo de um novo massacre. Vasques considera o episódio um “recado dos ruralistas” e avalia que a ofensiva de fazendeiros atingiu um novo patamar.
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“Os alunos estavam na sala de aula quando saiu aquela ameaça. Todo mundo ficou apavorado: mãe, família… Aqueles que moravam perto foram correndo para pegar os filhos [na escola]. E os que não puderam, as crianças saíram correndo. Foi horrível”, afirma Vasques.
Segundo ele, agora as ameaças não se restringem apenas a lideranças que organizam retomada de territórios ancestrais, mas também contra crianças e mulheres indefesas que vivem no interior das TIs demarcadas e homologadas, como é o caso da Amambai.
“Diante do anúncio criminoso contra as vidas das crianças pedimos proteção às crianças na escola onde começa a aula, na escola indígena, solicitamos com urgência a investigação federal dos mentores e autores do possível ataque terrorismo e genocida contra as crianças Guarani e Kaiowá”, escreveu em nota a Aty Guasu.
Eleições internas têm fomentado conflitos, diz MPF
Antropólogos e indigenistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que a eleição para a liderança da comunidade Amambai, marcada para 31 de julho, pode estar fomentando conflitos internos.
A gestão por capitanias é uma herança deixada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que antecedeu a Funai. Conforme o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o sistema é baseado em uma lógica de controle verticalizado e autoritário, implementada quando os Guarani Kaiowá foram removidos à força de seus territórios e confinados em Postos Indígenas (PIs), que, mais tarde, seriam transformados em Terras Indígenas.
Neste ano, o MPF intermediou um acordo entre os Guarani Kaiowá e decidiu tomar a frente da organização no processo eleitoral, em conjunto com Polícia Federal, Defensoria Pública da União (DPU), Funai de Ponta Porã e de Amambai, além do antropólogo indígena Tonico Benites.
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Em reunião com lideranças no dia 11 de julho, o MPF pediu tranquilidade durante a eleição. O órgão afirmou por meio de nota que os indígenas se comprometeram “cessar qualquer ato de ameaça e violência entre si e no âmbito da Aldeia Amambai e da Retomada Guapoy Mirim”.
Os presentes no encontro se comprometeram ainda a “aceitar a liderança que vier a ser eleita e conviver pacificamente com ela futuramente na busca pelo bem comum de toda a comunidade”, informa comunicado do MPF.
A persistência do autoritário sistema de capitanias
O Cimi afirma que, nos territórios habitados por indígenas no Mato Grosso do Sul, a continuidade da existência da figura do capitão e vice-capitão contradiz a forma ancestral de organização política e social dos Guarani Kaiowá.
No passado, os grupos se reuniam sob o comando a orientações de núcleos familiares e lideranças mais velhas e experientes. Ainda sem a invasão de fazendeiros, as famílias viviam com autonomia territorial, organizacional e produtiva nos espaços tradicionalmente ocupados.
Antropólogos dizem que a solução mais comum era a realização de assembleias, que duravam até que o consenso fosse atingido. Caso não houvesse acordo, as famílias se dividiam e buscavam novos territórios.
Com o confinamento em pequenas reservas, imposto pelo SPI, o modelo de resolução de conflitos pautado pelo consenso foi substituído pelas capitanias chefiadas por indígenas, que acumularam poder e tinham até uma “polícia” própria, que usava a violência para resolver divergências.
Com o passar dos anos, os capitães acumularam ainda mais poder e se envolveram em negociações locais da política não indígena, atrelando sua atuação à agenda eleitoral de prefeitos e vereadores, que, por sua vez, está ligada aos interesses dos latifundiários do interior do estado.
O Cimi avalia que a Funai, ao dissolver o modelo de capitanias a partir de 1988, não se encarregou de promover uma substituição que levasse em consideração a tradição organizativa dos povos Guarani Kaiowá. A chegada de igrejas evangélicas tornou ainda mais complexa a vida política no interior das TIs, também contribuindo para o surgimento de conflitos.