Nota de pesar pelo falecimento de Rogério Ferrari

Nota de pesar pelo falecimento de Rogério Ferrari

É com imenso pesar que o Grupo de Pesquisa em Etnologia, Linguística e Saúde Indígena – ETNOLINSI do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (PPGA-UFBA) recebe a notícia de falecimento de Rogério Ferrari de Souza. Os/ pesquisadores/as deste grupo, do qual era parte e ajudou a fundar, solidarizam-se com a família e amigos/as.

Neste espaço de pesquisa e troca, Rogério Ferrari sempre se destacou por suas firmes posições acerca da importância do engajamento com as problemáticas vividas pelos interlocutores em campo. Foi assim que, durante a pandemia de COVID-19, quando foi criado ETNOLINSI, ele se envolveu em uma colaboração intensa e solidária com as comunidades Avá Guarani com as quais vinha trabalhando. Ao mesmo tempo, contribuiu com as atividades de extensão do Grupo, apresentando, em nossos encontros quinzenais, os relatos de como vinha atuando em prol do monitoramento de dados epidemiológicos realizado pelas comunidades Avá Guarani. Seu compromisso e empenho inspiravam a todos/as e, logo, concebemos coletivamente o projeto e a realização do curso de extensão em Antropologia da Saúde Indígena e Epidemiologia Intercultural, voltado a lideranças indígenas, caciques/as, pajés, parteiras, conselheiros/as e profissionais de saúde indígena. 

Em meio ao isolamento social, junto ao trabalho, solidariedade e apoio às comunidades indígenas, Rogério vinha também desenvolvendo, nos encontros do Grupo de Pesquisa, um trabalho de reflexão crítica sobre as práticas políticas e cosmopolíticas indígenas, acompanhando os processos de “reexistência” do povo Avá Guarani confinado a pequenos espaços nos arredores da represa de Itaipu, parte da pesquisa de doutorando que desenvolvia no PPGA/UFBA titulada “Diante da Terra com Mal. Re-Existência Mbyá Guarani frente ao neocolonialismo dos Estados brasileiro e argentino”.

Seu interesse nessas formas políticas indígenas, que envolvem a chefia e o exercício da liderança, partia em grande parte de um interesse nas propostas autonômicas que ele acompanhava como parte de sua trajetória como ativista, fotógrafo e antropólogo em estadas com os Curdos e os Zapatistas. Acompanhando os debates recentes da etnologia brasileira e buscando dialogar com o pensamento crítico latino-americano, que acompanhou sua trajetória pessoal, Rogério Ferrari afirmava em seu relatório de qualificação: 

“Diante dessa realidade, a existência do povo guarani pode ser compreendida sob o signo de uma reexistência. A presença desse povo ainda que não tenha logrado deter a voracidade de um capitalismo tardio sob seus territórios, é, contudo, dissonante às pretensões totalizantes do Estado nacional. a cultura nacional hegemônica. Não obstante o empenho dos Estados nacionais em completar a tarefa que os colonizadores espanhóis e portugueses não concluíram, podemos dizer, desde já, que os Guarani se caracterizam pela capacidade de se manterem todavia incapturáveis”.  

Além de antropólogo crítico, sério e dedicado, Rogério Ferrari era também um renomado fotojornalista que trabalhou em importantes veículos de comunicação como as revistas Carta Capital, Veja e Acción (Argentina), assim como para os periódicos El Tiempo (México), Bahia Hoje e Correio. Trabalhou também para as agências de notícias Reuters e Prensa Latina (Cuba).

Seus trabalhos como fotojornalista abordaram diversas temáticas sociais como: as Mães da Praça de Maio; a Eco 92; a Crise dos Balseiros (Cuba); a Intervenção das Forças Armadas no Rio de Janeiro; as Mulheres Maias (México-Guatemala); a Queda do Muro de Berlim. Também como parte de seu projeto fotográfico de largo fôlego “Existências-Resistências”, onde retrataria a luta de povos e movimentos sociais por terra e autodeterminação, publicou, em 2004, o livro “Palestina: eloquência de sangue”, em 2006, “Zapatistas: a velocidade do sonho”, em 2007, “Curdos: uma nação esquecida” (2007), em 2008, “Palestine” e em 2010 “Sahraouis”.

Seu engajamento político e sensível marcou sua produção visual e foi fundamental na sua forma de entender a antropologia. Entre 2010 e 2011, Rogério Ferrari percorreu 40 municípios no interior da Bahia e registrou o cotidiano do povo cigano num trabalho que culminou em seu livro “Ciganos” (2011) e em sua dissertação de mestrado defendida no PPGA, em 2016, com o título “Nós Outros, os Ciganos. Entre o Estigma e a Resistência”. Do mesmo modo, em um dos seus últimos trabalhos, de 2019, retratou a luta diária dos povos indígenas no trabalho “Parentes”, também parte do projeto “Existências-Resistências”. Para ele, “os retratos sugerem um autoreconhecimento coletivo e a reiteração de uma identidade e de uma solidariedade negligenciadas”(https://taperatapera.com.br/events/lancamento-do-livro-parentes-de-rogerio-ferrari/).  Em outro trecho do livro escutamos sua voz crítica e sensível ao afirmar: 

“Todos aquelas vidas e mundos que estavam nesse território antes da chegada das caravelas foram violentados, caçados, exterminados, aldeados, para dar lugar aos  pioneiros que um dia chegaram em navios, mulas, trens, ônibus, em longas caminhadas e em aviões particulares”.

Um livro que trouxe o registro de povos indígenas na Bahia, mostrando, em suas palavras, “a face, para muitos desconhecida, dos nossos parentes Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe, Tupinambá, Pankaru, Pankararé, Tuxá, Atikun, Kaimbé, Tumbalalá, Kiriri, Kantaturé, Tuxi, Kariri-Xocó e Truká” (Rogério Ferrari, 2019, fonte:https://taperatapera.com.br/events/lancamento-do-livro-parentes-de-rogerio-ferrari/).

Rogério Ferrari sempre foi um profissional crítico, engajado e solidário com colegas, lideranças de movimentos sociais e pesquisadores/as.  Contribuiu e continuará contribuindo de modo ímpar para a re-existência, autodeterminação e para a consolidação de outros mundos possíveis, libertários e decoloniais.